sábado, 9 de janeiro de 2016
Bendita crise
Ele convoca uma reunião emergencial, com seus dois braços direitos e a diretoria.
Miranda e Mario são atendidos primeiro. Ele explica que apesar de toda a crise receberão um reajuste salarial generoso. Lembra da fidelidade dos dois à Firma, Miranda inicialmente e Mario que chegou ao grupo posteriormente. Disse não ser justo que os dois sofressem os efeitos perversos da atual situação econômica, ocasionada pelo que chama de "desgoverno". Aproveitou e abriu o Financial Times em uma determinada página. Leu um trecho, embora não soubesse falar, escrever ou mesmo ler em inglês. Contratou grandes professores, mas não adiantava. Resolveu o problema contratando sua última professora particular como secretária. Dona Dalva lia para ele quando se interessava por algum assunto. Gostava de em encontros falar que tinha lido em algum jornal estrangeiro.
Miranda agradeceu, embora apenas mentalmente, a Deus, pelo reajuste, pois temia um congelamento salarial ou até mesmo uma redução. Grande parte dos ganhos vinha em caixa dois e bastava o chefe-presidente decidir e os ganhos de todo mundo seriam reduzidos drasticamente.
Ele estava preocupado com o reajuste das mensalidades escolares e antes de ir pra firma tivera uma discussão com a mulher, quando propusera transferir as duas filhas para uma escola inferior, pelo menos em status, mas também tida como de qualidade. Cortariam as aulas de balé e suspenderiam o clube.
Mario, solteirão, precisava do dinheiro para cuidar da mãe inválida. Temia perder o plano de saúde dos melhores e os gastos com o remédio. O plano, em parte, era mantido pela Firma.
No fim, os dois, falando quase que ao mesmo tempo, agradeceram ao chefe-presidente.
Na reunião como os seis outros diretores, o chefe pediu a colaboração de todos. Falou que para efeitos fiscais e contábeis estavam recebendo o reajuste de produtividade, no que chamou de "enorme sacrifício empresarial", pois "vocês bem sabem que a crise está cruel". Citou o concorrente que estava diminuindo o número de diretores e até mesmo demitindo.
Frisou que para manter o padrão salarial da diretoria seria, no entanto, necessário fazer um drástico corte de pessoal. Para não causar pânico e desânimo que esses cortes fossem feito aos poucos, revezando os departamentos. Mas, até o fim do ano queria reduzir o efetivo a metade, sem que houvesse queda na produtividade. Pelo contrário, "em crise temos que responder com o desafio do crescimento."
O chefe quis citar Churchill: "sangue, suor e lágrimas", mas achou prudente guardar esse trunfo para quando fizesse a tradicional reunião de Páscoa com os funcionários. Estava apenas no início do ano e não era bom gastar munição.
Olhou pro relógio - simples comprado em um camelô - e fazia questão de frisar isso sempre, alegando que ajudara um pobre homem e hora é sempre a mesma em qualquer relógio, desde que não atrase ou adiante.
Desculpou em não ficar para o almoço tradicional com a diretoria, pois daqui a duas horas o avião partiria para Zurique e não poderia se atrasar para aquela reunião empresarial e de grande interesse para a Firma.
Todos sabiam que, de fato, o chefe iria encontrar-se com uma amante francesa, 40 anos mais nova do que ele, levando uma gargantilha de prata. Explicaria a ela que pesara em uma de ouro, mas precisaria deixar a crise passar, tanto que retornaria já no dia seguinte ao seu país, pois, "o boi só engorda quando o dono está presente". Tinha aprendido isso com seu avô.
Mauricio Figueiredo
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